sábado, 27 de março de 2010

Amar muito quando é permitido

Billie Holiday



... Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda.
Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo.
De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito.
E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira.
Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças.
Mesmo que depois venha o tempo do sal, não do mel...

(Caio Fernando Abreu)

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