sábado, 27 de março de 2010

Amar muito quando é permitido

Billie Holiday



... Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda.
Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo.
De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito.
E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira.
Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças.
Mesmo que depois venha o tempo do sal, não do mel...

(Caio Fernando Abreu)

sábado, 20 de março de 2010

Poema da Saudade

Le Voyeur - José Barbosa


Em alguma outra vida, devemos ter feito algo muito grave, para sentirmos tanta saudade...
Trancar o dedo numa porta doí.
Bater o queixo no chão doí.
Doí morder a língua, cólica doí, doí torcer o tornozelo.
Doí bater a cabeça na quina da mesa, cárie doí, pedras nos rins também doí.
Mas o que mais doí é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma brincadeira de infância.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade de nós mesmo, o tempo não perdoa.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se Ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o dentista e ele para a trabalho, mas sabiam-se onde.
Você podia ficar sem vê-lo, e ele sem vê-la, mas sabiam-se amanhã.
Contudo, quando o Amor de um acaba, ou torna-se menor no outro.
Sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é basicamente não saber.
Não saber se ele continua fungando num ambiente mais frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Se aprendeu a entrar na internet, se aprendeu a ter calma no trânsito.
Se continua preferindo cerveja a uísque (e qual a cerveja)
Se continua sorrindo com aqueles olhos apertados , e que sorriso lindo.
Será que ele continua cantando aquelas mesmas musicas tão bem (ao menos eu admirava)?
Será que ele continua fumando e se continua adorando Mac Donald's?
Será que ele continua não amando os livros, e ela cada vez mais?
E continua não gostando de dar longas caminhadas, e ela não assistindo televisão?
Será que ele continua gostando de filmes de ação, e ela de chorar em comédias.
Será que ela continua lendo os livros que já leu?
Será que ele continua tossindo cada vez que fuma?
Saber é não saber mesmo!!!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais longos, não saber como encontrar
tarefas que lhe cessem o pensamento.
Não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ele está com outra, e ao mesmo tempo querer.
É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso...
É não querer saber se ele está mais magro, se ele está mais belo.
Saudade é nunca mais saber de quem se Ama e ainda assim doer.
Saudade é isso que senti (e sinto) enquanto estive escrevendo e o que você (deveria)provavelmente estar sentido agora depois que acabou de ler.
Quem inventou a distância nunca sofreu a dor de uma saudade!

(Martha Medeiros)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Flores

Foto Fundação Helmut Newton (Monica Bellucci)



Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas tem gosto bom na boca - é só experimentar. Mas a rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz do Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosa brancas. As amarelas são de um alarme alegre. As cores de rosas são em geral mais carnudas e tem a cor por excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.Preste atenção e é um favor: estou convidando você a mudar-se para um reino novo.Já o cravo tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta beleza.Os brancos lembram o caixão de criança defunta: o cheiro então se torna pungente e a gente desvia a cabeça para o lado com horror. Como transplantar o cravo para a tela?O girassol é o grande filho do sol. Tanto que sabe virar sua enorme corola para o lado de quem o criou. Não importa se é pai ou mãe. Não sei. Será o girassol flor feminina ou masculina? Acho que é masculina.A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase não perfume é glória abafada, mas exige da gente que o busque. Não grita nunca seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer.A sempre-viva é sempre morta. Sua secura tende à eternidade. O nome em grego quer dizer: sol de ouro.A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele .Só tem uma camada de pétalas. O centro é uma brincadeira infantil. A formosa orquídea é exquise e antipática. Não é expontânea. Requer redoma. Mas é mulher esplendorosa e isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre porque é epífita. Epífitas nascem sobre outras plantas sem contudo tirar delas a nutrição. Estava mentindo quando disse que era antipática. Adoro orquídeas. Já nascem artificiais, já nascem arte.Tulipa só é tulipa na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto para ser.Flor dos trigais só dá no meio do trigo. Na sua humildade tem a ousadia de aparecer em diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Nos presépios da Espanha não se separa os ramos de trigo. É um pequeno coração batendo. Mas angélica é perigosa. Tem perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a hóstia. Muitos tem vontade de come-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.O jasmim é dos namorados. Dá vontade de por reticências agora. Eles andam de mãos dadas, balançando os braços, e se dão beijos suaves ao quase som odorante do jardim.Estrelícia é masculina por excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo e o seu canto. Só que não espera pela aurora.A violência de tua beleza.Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo. Só sai de noite com seu cheiro tonteador.Dama-da-noite é silente.E também da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas.É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém aguenta. Mas eu aguento porque amo o perigo. Quanto à suculenta flor de cáctus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta desértica. É o explendor nascendo da esterilidade despótica.Estou com preguiça de falar da edelvais. É que se encontra à altura de três mil e quatrocentros metros de altitude. É branca e lanosa.Raramente alcançável: é a aspiração.Gerânio é flor de canteiro de janela.Encontra-se em São Paulo no bairro do Grajaú e na Suíça. Vitória-régia está no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Enorme até quase dois metros de diâmetro. Aquáticas, é de se morrer delas. Elas são o amazônico:o dinossauro das flores. Espalham grande tranquilidade.A um tempo majestosas e simples. E apesar de viverem no nível das águas elas dão sombras. Isto que estou te escrevendo é em latim:de natura florum. Depois te mostrarei o meu estudo já transformado em desenho linear.O crisântemo é de alegria profunda. Fala através da cor e do despenteado. É flor que descabeladamente controla a própria selvageria.Acho que vou ter que pedir licença para morrer. Mas não posso, é tarde demais. Ouvi o Pássaro de Fogo - e afoguei-me inteira.Tenho que interromper porque - eu não disse? Eu não disse que um dia ia me acontecer uma coisa? Pois aconteceu agora mesmo.


(Clarice Lispector)