sábado, 27 de fevereiro de 2010

Não entender



lindos olhos de Chico Buarque



Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

(Clarice Lispector)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Existe um ser que mora dentro de mim ...

Foto by Izan Petterle


“Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez”.


(Clarice Lispector In Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Primavera

Foto by Gigio (Lígia e Rafael)


O meu amor sozinho é assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela como é triste se sentir saudade
É que eu gosto tanto dela que é capaz dela gostar de mim
E acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde
Estrela, eu lhe diria, desce à terra, o amor existe
E a poesia só espera ver
Nascer a primavera
Para nunca mais morrer
Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho
Eu queria ter felicidade
É que o meu amor é tanto
É um encanto que não tem mais fim
E no entanto ele nem sabe que isso existe
E é tão triste se sentir saudade
Amor, eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei
Ai quem me dera eu pudesse ser
A sua primavera e depois morrer...


(Carlos Lyra/Vinícius de Moraes)
PS.: foto casamento minha filha Lígia e Rafael (dez/09)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Altos e Baixos

Elis Regina


Foi, quem sabe, esse disco
Esse risco de sombra em teus cílios
Foi ou não meu poema no chão
Ou talvez nossos filhos
As sandálias de saltos tão altos
O relógio batendo, o sol posto, o relógio
As sandálias, e eu bantendo em teu rosto
E a queda dos saltos tão altos
Sobre os nossos filhos
Com um raio de sangue no chão
Do risco em teus cílios
Foram discos demais, desculpas demais
Já vão tarde essas tardes e mais tuas aulas
Meu táxi, whisky, Dietil, Dienpax
Ah, mas há que se louvar entre altos e baixos
O amor quando traz tanta vida
Que até prá morrer
leva tempo demais ...


(Sueli Costa/Aldir Blanc)