sábado, 21 de novembro de 2009

Objeto do Amor ...



"Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."


(Lou Salomé)

sábado, 24 de outubro de 2009

Não era amor, era melhor ...


…Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados.
A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai se estabilizar, só não se sabe se vai ser antes ou depois de se chocar contra o solo. Eu bati a 200 km por hora e estou voltando a pé prá casa, avariada.
Eu sei, não precisa me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entre adultos. Talvez este seja o ponto. Talvez eu não seja adulta o suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça, acreditar em contos de fada, achar que a gente muda o que sente, e que bastaria apertar um botão que as luzes apagariam e eu voltaria a minha vida satisfatória, sem sequelas, sem registro de ocorrência? Eu não amei aquele cara. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada. Não era amor, era uma sorte. Não era amor, era uma travessura. Não era amor, eram dois travesseiros. Não era amor, eram dois celulares desligados. Não era amor, era de tarde. Não era amor, era inverno. Não era amor, era sem medo.
NÃO ERA AMOR, ERA MELHOR”

(Martha Medeiros)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O início do amor ...

Amadeo Modigliani

“O amor começa com uma metáfora. Ou, por outras palavras, o amor começa no preciso instante em que, com uma das suas palavras, uma mulher se inscreve na nossa memória poética.”

(Trecho- "A insustentável leveza do ser" - Milan Kundera)

domingo, 18 de outubro de 2009

Leveza ...

Shophie Marceau - filme Anna Karenina

"... Mas, na verdade, será atroz o peso e belo a leveza? O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira."

(trecho do livro " A insustentável leveza do ser" - Milan Kundera)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tenta esquecer-me ...



Tenta esquecer-me… Ser lembrado é como evocar
Um fantasma… Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo…
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se…
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir… é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho…
Deixa-me fluir, passar, cantar…
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!
(Mário Quintana)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Não me peçam Razões ...

Greta Garbo



Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.


(José Saramago in "Os Poemas Possíveis")

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Angústia

Foto: Blog 1000 Imagens
"Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.
Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.
Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.
Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior."

(Paul Verlaine in "Melancolia" Tradução de Fernando Pinto do Amaral)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Nem vem que não tem!

Foto: Pierre Verger (fonte: Fundação Pierre Verger)



Nem Vem
Que Não Tem
Nem vem de garfo
Que hoje é dia de sopa
Esquenta o ferro
Passa a minha roupa
Eu nesse embalo
Vou botar prá quebrar
Sacudim, sacundáS
acundim, gundim, gundá!...
Nem Vem
Que Não Tem
Nem vem de escada
Que o incêndio é no porão
Tira o tamanco
Tem sinteco no chão
Eu nesse embalo
Vou botar prá quebrar
Sacudim, sacundá
Sacundim, gundim, gundá!...
Nem Vem!
Numa casa de caboclo
Já disseram um é pouco
Dois é bom, três é demais
Nem Vem!
Guarda teu lugar na fila
Todo homem que vacila
A mulher passa prá trás...
Nem Vem
Que Não Tem
Prá virar cinza
Minha brasa demora
Michô meu papo
Mas já vamos embora
Eu nesse embalo
Vou botar prá quebrar
Sacudim, sacundá
Sacundim, gundim, gundá!...


(Carlos Imperial - gravação Wilson Simonal)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Canção do Suicida

Cena "Ópera Carmen (Bizet) "



Só mais um momento.
Que voltem sempre a cortar-me a corda.
Há pouco estava tão preparado e havia já um pouco de eternidade nas minhas entranhas. Estendem-me a colher, esta colher de vida.
Não, quero e já não quero, deixem-me vomitar sobre mim.
Sei que a vida é boa e que o mundo é uma taça cheia,
mas a mim não me chega ao sangue, a mim só me sobe à cabeça.
Aos outros alimenta-os, a mim põe-me doente; compreendei que há quem a despreze.
Durante pelo menos mil anos preciso agora fazer dieta.

(Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" Tradução:Maria João Costa Pereira)

sábado, 29 de agosto de 2009

Deixa eu comprar doce?


Publicado na edição de 28/08/09 do Jornal Cruzeiro do Sul (caderno Ela - Sabor e Poesia)


Deixa eu comprar doce? Era logo ali. O bar do seu Pagão. Na frente, o do seu Chico, no bairro em que ainda era possível criança atravessar a rua para comprar doce, Vila Fiori. Muitos outros bairros seguiam o mesmo padrão: Vila Angélica, por exemplo, com seu Mateus, um atípico japonês dono de mercearia, semelhante em tudo à do seu Joaquim, este, Português, é claro.
A compra que se fazia com caderneta. As anotações a tinta, somadas para o final do mês. E havia óleo a litro, cujo vasilhame ia de casa para a mercearia. Ouvir o som da bomba e ver a boca do vasilhame na saída do tambor.
A vida era menos dispendiosa; nem se falava em preocupação com a natureza, mas sem querer éramos ecologicamente corretos. O pão vinha embrulhado em papel, que depois se aproveitava para escorrer o óleo da fritura (aquele mesmo do vasilhame, comprado a granel, que não gerava embalagens vazias). O café, coado em coador de pano, pois não havia os de papel para se lançar ao lixo. Tubaína em garrafas retornáveis.
As sementes de abóbora viravam torrado aperitivo, que era, ainda, poderoso vermífugo. Ainda existem lombrigas? Cascas de abacaxi para o suco. E quanto aos doces, delícias simples, também não vinham embaladas. Eram retiradas diretamente do balcão de madeira, com vidro de exposição, minha vitrine preferida. Nela, bala de correntinha e suas embalagens com estampas divertidas, que eu não entendia. Chupar uma a uma, repartir, abrir com dificuldade. E aquelas quase de vidro, sabores diversos, que nos eram dadas com alertas e sermões para o cuidado:
Não vá engolir inteira!!! Essa bala já engasgou trinta crianças. Não converse enquanto chupa. Não mastigue, quebra os dentes. Desobedecer e trincar a bala ruidosamente, ouvir os estalos ampliados. Pagar pra ver a história da criança com a bala atravessada na goela, salva pelo murro do médico nas costas, ai! Quantas crianças desengasgadas por Dr. Nilton, famoso médico sorocabano; e não só por balas, mas até espinhas de peixe que, graças ao doutor, permitiram que uma criança viesse a se tornar deputado, não é mesmo Pannunzio? Balas Juquinha. Jujubas coloridas. Puxar e esticar o pirulito Zorro, que se colava aos dentes de forma vigorosa, para nem conseguir abrir a boca. Cigarrinhos (politicamente incorretos), guarda-chuvas, garrafinhas com licor e moedinhas de chocolate, além dos peixinhos, embrulhados em papel alumínio e colorido.
Chupetas de açúcar. Sanduíches de bolacha com recheio de Maria Mole, ou aquela colorida, na ponta do copinho de sorvete, com brinquedo espetado, indiozinhos e cowboys de plástico e em miniatura, que muita criança comeu junto com o doce.
Era variedade para se experimentar sem repetir por semanas: pé de moleque, doce de abóbora, de batata doce, suspiro, bananada no copinho, Gibi, paçoca de rolha, cocada branca e preta, pipoca doce no saquinho cor-de-rosa.
Outro divertimento era o estranho comestível que em uma panela de óleo quente transformava sua textura e volume, o Mandiopã. As caixinhas com pó para sorvete que o avô fazia. Após congelado, era necessário colocar tudo no liquidificador e bater, bater, bater. Recongelar e bater outra vez. É para ficar cremoso, o avô explicava.
E quando da visita ao Centro, que chamávamos de Cidade, incluía-se no roteiro a padaria em que a tia trabalhava. Lá havia sequilhos, carolinas, sonhos, bombas e mantecais. E além do sorvete americano da padaria Americana, valia um outro, italiano, na porta do Mercado Municipal, que nem gelado era, e que foi provado pela primeira vez no dia em que arranquei um dente. Brigar por ele com as abelhas, que esvoaçavam em volta dos vidros coloridos e ver o líquido que se transformava em espuma quase gelada.
Crescemos assim, em meio a um doce de vez em quando, não sem alguma cárie, mas sem medo da obesidade, do colesterol, da gordura trans, dos radicais livres. Agora me surpreendo, ao tentar chupar um pirulito Zorro e não conseguir chegar nem a um quarto, dado o excesso de doçura. Percebo que meu paladar mudou, assim como as lembranças dos meus doces de infância, melhores que os próprios doces. Mas percebo também que muito da simplicidade cotidiana de nossos avós se perdeu, como o coador de pano, o papel para a fritura e os vasilhames retornáveis, que requerem urgente resgate e crítica de nossa suposta evolução: cultural, tecnológica, econômica e até gastronômica.

Míriam Cris Carlos, doutora em Comunicação, acha que comida é memória e é cultura (micriscarlos@uol.com.br)

sábado, 22 de agosto de 2009

Há palavras para tudo ...



"Felizmente há palavras para tudo.
Felizmente que existem algumas que não se esquecerão de recomendar que quem dá deve dar com as duas mãos para que em nenhuma delas fique o que a outras deveria pertencer.
Assim como a bondade não tem por que se envergonhar de ser bondade, também a justiça não deverá esquecer-se de que é, acima de tudo, restituição, restituição de direitos.
Todos eles, começando pelo direito elementar de viver dignamente.
Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, daria o primeiro lugar à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade.
Porque a bondade, por si só, já dispensa a justiça e a caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça."
(José Saramago -texto retirado do seu blog pessoal)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Censura

Clarice Lispector




Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata. Mas não estou seguro de mim mesmo: preciso perguntar, embora não saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é, que assim seja.

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Tango de Nancy



Quem sou eu para falar de amor
Se o amor me consumiu até a espinha
Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha
Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim
Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
E cheirando a gim
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por Deus, de pés juntos
Que nunca mais...
(Edu Lobo/Chico Buarque)

sábado, 25 de julho de 2009

Medo ...

Clarice Lispector


"O medo sempre me guiou para o que eu quero.
E porque eu quero, temo.
Muitas vezes foi o medo que me tomou pela mão e me levou.
O medo me leva ao perigo.
E tudo o que eu amo é arriscado.”


(Clarice Lispector)

sábado, 18 de julho de 2009

Resumo ...


"A todos trato muito bem
sou cordial, educada, quase sensata,
mas nada me dá mais prazer
do que ser persona non grata
expulsa do paraiso
uma mulher sem juízo,
que não se comove
com nada
cruel e refinada
que não merece ir pro céu,
uma vilã de novela
mas bela, e até mesmo culta
estranha, com tantos amigos
e amada, bem vestida e respeitada
aqui entre nós
melhor que ser boazinha é não poder ser imitada."
(Martha Medeiros)

sábado, 11 de julho de 2009

Corsário do Rei

"É bonito ver passar o tempo
Ele já foi meu
Ele já foi meu
Já usou meu corpo
Ele abusou de mim
Será que me esqueceu ...
Será que me esqueceu ...
Tive grandes planos
Sonhos geniais
Eu já tive vinte anos
Pois agora eu tenho mais
Tenho sete mares
Mortes, mais de cem
Já rendi uma cidade
Agora eu quero bem
Mil e um amores
Cheiro de mulher
Mamas de todas as cores
Mamarei enquanto houver
Garrafões de vinho
Caldeirões de rum
Se ficarem no caminho
Não vai sobrar nenhum
Nem um louco pra cantar as minhas glórias
Nem um fraco, a minha perdição
Nem as águas
As memórias
Da trajetória do meu galeão
Galeões de Espanha
Ide ao vosso rei
Ele sabe a minha sanha
Mencionai-lhe que eu voltei
Preparar a tropa
Almirante inglês
Já montei vossa chalupa
Desmonto dessa vez
Quero bandalheira
Esfregar os pés
Já sujei vossa bandeira
Mijarei vosso convés
Destroçar os panos
Quero bacanais
Eu já tive vinte anos
Agora eu quero mais ..."
(Corsário do Rei - Edu Lobo/Chico Buarque)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Eu triste sou calada ...

Eu triste sou calada
Eu brava sou estúpida
Eu lúcida sou chata
Eu gata sou esperta
Eu cega sou vidente
Eu carente sou insana
Eu malandra sou fresca
Eu seca sou vazia
Eu fria sou distante
Eu quente sou oleosa
Eu prosa sou tantas
Eu santa sou gelada
Eu salgada sou crua
Eu pura sou tentada
Eu sentada sou alta
Eu jovem sou donzela
Eu bela sou fútil
Eu útil sou boa
Eu à toa sou tua.
(Martha Medeiros)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Um dia, um Adeus ...


Só você prá dar
A minha vida direção
O tom, a cor
Me fez voltar a ver a luz
Estrela no deserto a me guiar
Farol no mar, da incerteza...
Um dia um adeus
E eu indo embora
Quanta loucura
Por tão pouca aventura...
Agora entendo
Que andei perdido
O que é que eu faço
Prá você me perdoar...
Ah! que bom seria
Se eu pudesse te abraçar
Beijar, sentir
Como a primeira vez
Te dar o carinho
Que você merece ter
E eu sei te amar
Como ninguém mais...
Ninguém mais
Como ninguém
Jamais te amou
Ninguém jamais te amou
Te amou...
Como eu, como eu...
(Um dia, um Adeus - Guilherme Arantes)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Espanhola



Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla.
Ei-lo ao rés do chão, irado,a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

Dançarina Espanhola (Rainer Maria Rilke)

terça-feira, 17 de março de 2009

Aquele outro não via ...




Aquele Outro não via minha muita amplidão
Nada lhe bastava.
Nem ígneas cantigas.
E agora vã, te pareço soberba, magnífica
E fodes como quem morre a última conquista
E ardes como desejei arder de santidade.
(E há luz na tua carne e tu palpitas)

Ah, por que me vejo vasta e inflexível
Desejando um desejo vizinhante
De uma
Fome irada e obsessiva?

E por que haverias de querer...

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro.
E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo.
Obriga-me.
(Hilda Hilst)

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Serenata

Foto: by Foguinho


Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
(Adélia Prado)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Não quero amigos adultos ...


"Escolho meus amigos não pela pele ou outro 'arquétipo' qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril."
(Oscar Wilde)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Todas as Vidas ...

A Família - Tarsila do Amaral

"Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira.
– Enxerto da terra, meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a vida mera das obscuras."
(Cora Coralina)