sábado, 29 de agosto de 2009

Deixa eu comprar doce?


Publicado na edição de 28/08/09 do Jornal Cruzeiro do Sul (caderno Ela - Sabor e Poesia)


Deixa eu comprar doce? Era logo ali. O bar do seu Pagão. Na frente, o do seu Chico, no bairro em que ainda era possível criança atravessar a rua para comprar doce, Vila Fiori. Muitos outros bairros seguiam o mesmo padrão: Vila Angélica, por exemplo, com seu Mateus, um atípico japonês dono de mercearia, semelhante em tudo à do seu Joaquim, este, Português, é claro.
A compra que se fazia com caderneta. As anotações a tinta, somadas para o final do mês. E havia óleo a litro, cujo vasilhame ia de casa para a mercearia. Ouvir o som da bomba e ver a boca do vasilhame na saída do tambor.
A vida era menos dispendiosa; nem se falava em preocupação com a natureza, mas sem querer éramos ecologicamente corretos. O pão vinha embrulhado em papel, que depois se aproveitava para escorrer o óleo da fritura (aquele mesmo do vasilhame, comprado a granel, que não gerava embalagens vazias). O café, coado em coador de pano, pois não havia os de papel para se lançar ao lixo. Tubaína em garrafas retornáveis.
As sementes de abóbora viravam torrado aperitivo, que era, ainda, poderoso vermífugo. Ainda existem lombrigas? Cascas de abacaxi para o suco. E quanto aos doces, delícias simples, também não vinham embaladas. Eram retiradas diretamente do balcão de madeira, com vidro de exposição, minha vitrine preferida. Nela, bala de correntinha e suas embalagens com estampas divertidas, que eu não entendia. Chupar uma a uma, repartir, abrir com dificuldade. E aquelas quase de vidro, sabores diversos, que nos eram dadas com alertas e sermões para o cuidado:
Não vá engolir inteira!!! Essa bala já engasgou trinta crianças. Não converse enquanto chupa. Não mastigue, quebra os dentes. Desobedecer e trincar a bala ruidosamente, ouvir os estalos ampliados. Pagar pra ver a história da criança com a bala atravessada na goela, salva pelo murro do médico nas costas, ai! Quantas crianças desengasgadas por Dr. Nilton, famoso médico sorocabano; e não só por balas, mas até espinhas de peixe que, graças ao doutor, permitiram que uma criança viesse a se tornar deputado, não é mesmo Pannunzio? Balas Juquinha. Jujubas coloridas. Puxar e esticar o pirulito Zorro, que se colava aos dentes de forma vigorosa, para nem conseguir abrir a boca. Cigarrinhos (politicamente incorretos), guarda-chuvas, garrafinhas com licor e moedinhas de chocolate, além dos peixinhos, embrulhados em papel alumínio e colorido.
Chupetas de açúcar. Sanduíches de bolacha com recheio de Maria Mole, ou aquela colorida, na ponta do copinho de sorvete, com brinquedo espetado, indiozinhos e cowboys de plástico e em miniatura, que muita criança comeu junto com o doce.
Era variedade para se experimentar sem repetir por semanas: pé de moleque, doce de abóbora, de batata doce, suspiro, bananada no copinho, Gibi, paçoca de rolha, cocada branca e preta, pipoca doce no saquinho cor-de-rosa.
Outro divertimento era o estranho comestível que em uma panela de óleo quente transformava sua textura e volume, o Mandiopã. As caixinhas com pó para sorvete que o avô fazia. Após congelado, era necessário colocar tudo no liquidificador e bater, bater, bater. Recongelar e bater outra vez. É para ficar cremoso, o avô explicava.
E quando da visita ao Centro, que chamávamos de Cidade, incluía-se no roteiro a padaria em que a tia trabalhava. Lá havia sequilhos, carolinas, sonhos, bombas e mantecais. E além do sorvete americano da padaria Americana, valia um outro, italiano, na porta do Mercado Municipal, que nem gelado era, e que foi provado pela primeira vez no dia em que arranquei um dente. Brigar por ele com as abelhas, que esvoaçavam em volta dos vidros coloridos e ver o líquido que se transformava em espuma quase gelada.
Crescemos assim, em meio a um doce de vez em quando, não sem alguma cárie, mas sem medo da obesidade, do colesterol, da gordura trans, dos radicais livres. Agora me surpreendo, ao tentar chupar um pirulito Zorro e não conseguir chegar nem a um quarto, dado o excesso de doçura. Percebo que meu paladar mudou, assim como as lembranças dos meus doces de infância, melhores que os próprios doces. Mas percebo também que muito da simplicidade cotidiana de nossos avós se perdeu, como o coador de pano, o papel para a fritura e os vasilhames retornáveis, que requerem urgente resgate e crítica de nossa suposta evolução: cultural, tecnológica, econômica e até gastronômica.

Míriam Cris Carlos, doutora em Comunicação, acha que comida é memória e é cultura (micriscarlos@uol.com.br)

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