quarta-feira, 7 de maio de 2008

O Violinista


Violino: Marcos Boi /Foto:Edeson Souza /Arte: Ly Ferraz


Clara olhava-o com insistência através do grosso vidro à prova de som que separava as salas de aula. De sua cadeira no canto direito no fundo da classe, mal escutava o que a professora de música dissertava, naquela maçante aula teórica. Gostava apenas de tocar. Não tinha paciência para as partituras. Tocava meio que por intuição musical. E principalmente por amor.
Talvez por isso ele tenha lhe chamado a atenção. Era violinista. E tocava de olhos fechados, sem mirar por um instante sequer a partitura aberta à sua frente. As pálpebras sobre os olhos cerrados se movimentavam em compasso e harmonia, as mãos enormes e morenas tinham uma delicadeza sem cabimento por parecerem tão viris aos olhos da menina. Mãos que seguravam o instrumento com a suavidade que ela imaginava-o segurando os seus quadris, em seus devaneios constantes desde que o vira pela primeira vez na escola de música.
Observava sua boca carnuda, que permanecia entreaberta, os músculos tesos da face, onde apoiava o violino, o cabelo castanho desalinhado, que comprido tocava os ombros levemente, a curva do braço em arco, onde se via a penugem clara e as veias azuladas. Tudo naquele homem era movimento, poesia e música. Tudo naquele homem fazia Clara desmanchar-se.
Desde que o viu começou a ter um prazer indescritível em freqüentar as aulas teóricas. Duas vezes por semana. Descobriu aquela cadeira no fundo da classe e há meses só se sentava nela, chegando a ponto de estar presente meia hora mais cedo para que tivesse seu lugar garantido em seu camarote na sala lotada.
E dali se perdia. Conhecia cada poro de seu objeto de desejo, cada gesto, cada mecha de seu cabelo, cada movimentar de sua boca. Inebriada de sonhos e desejos os cinqüenta minutos de aula voavam.
Sua aula terminava mais cedo que a dele. Por isso nunca o encontrava nos corredores, ou nas portas das classes. A visão que tinha dele era apenas a emoldurada pelo grosso vidro quadrado, que separava o sonho do real, suas mãos da pele dele. Um quadro onde ele, móvel e lindo, habitava.
Por meses chegava em casa depois de observa-lo sentindo o corpo em fogo. Demorava no banho, a água quente descendo convidativa pelo seu corpo e imaginava cenas absolutamente impublicáveis entre os dois. Desejo. Paixão. As mãos enormes agarrando seu corpo. O braço forte em arco, porém agora, no lugar do violino, sua cintura. Movimentos suaves, bruscos, rítmicos, frenéticos, até que um tempo depois, junto com o gozo, surgia em sua mente as notas doídas do violino. Ela se desmanchando, jogada no chão do box, entre soluços e gemidos solitários, juntando os cacos de seus delírios.
Sua vida ultimamente se resumia ao prazer daqueles cinqüenta minutos olhando o deus. Antes de entrar na aula seu coração disparava, as mãos suavam frio, sua boca tremia. Sentia-se uma noiva entrando na nave da igreja, tamanha sua ansiedade descontrolada. Obsessão seria a palavra correta. Mas ela não sabia disso. Julgava ama-lo.
Sempre foi muito tímida, caseira e pudica. Praticamente virgem, se não fosse pela sua primeira vez desastrada com seu primeiro e único namorado, um menino magro, de aparelho nos dentes e óculos de aros grossos, alguns anos atrás.
Foi estudar música para aprender lidar um pouco melhor com a timidez, sair de casa, fazer amigos. Mas isso não aconteceu. Não fez amigos. Não ficou menos tímida. Continuava trancada em casa. Um espírito solitário, encerrado em si mesmo. Só sentia-se livre com sua flauta encostada nos lábios. Aí sua alma fluía e ela se soltava. Ótima aluna. Menos nas aulas teóricas.
Não sabia sequer o nome dele e jamais teria coragem de perguntar para alguém. Muito simples perguntar: quem é o cara? Mas não para ela. Falar com ele então...JAMAIS. Ela sentia vertigens só de imaginar o ato. Clara era muito, mas muito complicada mesmo.
Mas algo acontecia dentro dela. Clara queria aquele homem. Após mais uns tantos meses de preparo, decidiu um dia espera-lo até o fim de sua aula e puxar um assunto, perguntar a marca de seu violino, ou as horas talvez. Ela queria ouvir sua voz. Fazê-lo perceber sua existência.
No dia H, Clara pensou na roupa, no cabelo, no perfume, nas frases, no tom de sua voz, no sorriso que iria usar. Depois pensou no beijo, no cabelo dele roçando seus seios, nas mãos deslizando no seu corpo, na respiração ofegante e libidinosa dos dois entrelaçados no lençol branco de sua cama.
Terminou sua aula e postou-se corajosamente frente à escola de música, encostada à parede, perto da porta. Aguardou por quase meia hora com o estômago em frangalhos, a garganta seca, as pernas bambas, as mãos suadas, que mal amparavam a alça da bolsa numa mão e a flauta na outra.
Então, como que em câmara lenta, o viu projetando o corpo tão sonhado para fora da porta. Fora da moldura de vidro era ainda mais lindo. Alto, muito alto. A pele acetinada, morena. Os cabelos soltos. Sentiu seu corpo todo se retrair, como num espasmo. No meio de uma multidão de alunos que saíam apressados, Clara quase perdeu seu objeto de vista. Mas não. Viu-o em seguida encostado à parede, do lado oposto da que ela estava. Ela, a porta, ele.
Olhava-o de canto, sem parar de tremer, sem um mínimo movimento voluntário, rezando para todos os santos para que conseguisse. Que calmamente dirigisse a ele uma palavra que fosse. Só uma. A palavra que seria a primeira de muitas. Aquela que definiria sua vida.
E num rompante que quase travou todos os seus músculos, deu três passos na direção dele e articulou quase com desespero as primeiras palavras: “...que horas...”, embora tenha observado que ele não trazia relógio no pulso. No momento a seguir em que ela viu seus olhos pousados nela e que sua linda boca começava a articular algo, um vento varreu tudo. Inesperadamente uma mulher correu na direção dele, vinda do outro lado da rua e arremessou seu corpo de curvas perfeitas de encontro ao corpo dele, que correspondeu com um riso escancarado ao abraço sôfrego. Rodopiaram no ar, grudados, onde os cabelos longos dos dois se misturavam e onde bocas indefinidas e línguas molhadas passeavam, ardendo em desejo. Um balé de braços, pernas, beijos, cabelos, mãos, olhares e afagos.
E Clara ali, parada, a um metro da cena, com os olhos injetados e a boca crispada, imóvel. O momento descongelou-se quando ela ainda pôde ver o casal caminhando pela calçada, na direção oposta da dela, abraçados, rindo e falando alto, loucos de amor, totalmente indiferentes à presença da menina. E ainda olhou a bunda perfeita da moça rebolando em sua calça jeans muito justa.
Clara então, livrando-se da imobilidade correu, correu muito, em prantos, rasgando aos pedaços a saia nova que comprara para o encontro, tirando da boca, com as costas das mãos, o batom que pela primeira vez passara, depois de muitos anos. Naquele momento seu castelo de cristal quebrou-se. Não tinha equilíbrio para entender que aquela paixão platônica seria superada, pois como só nós sabemos, ela tinha uma cabeça muito tumultuada e não encarava as coisas como a maioria das pessoas ditas normais. Era uma obcecada.
Até que na rua transversal muito movimentada, a alguns quarteirões da escola de música, atravessando-a desarvorada, sem olhar para os lados, tomada de pânico, foi atropelada por uma moto potente. Caída na rua, ainda viva, com sua flauta na mão e um filete de sangue na boca, ainda pôde olhar, dentro de um carro estacionado, os olhos assustados de seu amor e da menina que estava com ele pousados nos dela, morrendo.
(Alessandra Mascarenhas)

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